segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O olhar desumanizante

Pintura: Salvador Dalí

O início do 2017 brasileiro foi manchado por algumas tragédias, principalmente pelas chacinas em penitenciárias nos estados Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. Mais de cem pessoas morreram de forma cruel, algumas esquartejadas. Segundo as autoridades de segurança, as chacinas foram motivadas por conflitos entre três facções criminosas rivais: PCC (Primeiro Comando da Capital), Família do Norte e Comando Vermelho. Entretanto, a maior tragédia não foi as matanças, sim o olhar desumanizante que milhares, quiçá milhões de brasileiros, manifestaram em reação aos fatos. Incontáveis pessoas respaldaram as chacinas.

“Bandido bom é bandido morto.” A famosa frase de efeito está mais atual do que nunca. Do ponto de vista ético, preocupa-me perceber a facilidade com que as pessoas julgam quem merece viver. Colocar-se no lugar do outro, compreendê-lo por seu ponto de vista, está fora de moda. Todavia, para além desse julgamento, convém questionar: até que ponto um comportamento determinado contextualmente reflete a personalidade de um indivíduo como um todo? Uma ação ruim é sempre praticada por uma pessoa ruim? Essas perguntas se fazem necessárias ao julgar um ser humano.

O biólogo chileno Humberto Maturana, ao distinguir tipos de conversações, definiu a conversação de caracterização como aquela que caracteriza o ser humano a partir de um ou de vários comportamentos. O adjetivo “bandido”, retomando a frase que inaugura o parágrafo anterior, é uma dessas caracterizações. Ou seja, uma pessoa que se comportou como bandido em uma ou várias ocasiões recebe o rótulo como definição de seu ser, de forma totalizante.

A caracterização da personalidade como um todo é sempre um erro do ponto de vista ético, pois negligencia a determinação social e histórica de toda ação humana. Em outras palavras, somos vários em um só, agimos de múltiplas maneiras e podemos até ser vistos como pessoas diferentes dependendo do contexto no qual nos encontramos. Será que os julgadores nunca agiram como bandidos em alguma situação?

O olhar desumanizante cumpre ainda uma função importante para a vida mental das pessoas. Localizar a maldade no outro obscurece a própria. Freud denominou esse mecanismo de projeção. O indivíduo projeta no outro o que não suporta em si. Dessa forma, a convivência consigo mesmo fica bem mais fácil, mais suportável. Acreditar que os bandidos são o câncer de nossa sociedade, por exemplo, coloca-nos no lado bom da história. Acreditar que os bandidos são os únicos capazes de cometerem crimes cruéis (ou mesmo os únicos que cometem) nos deixa bem mais tranquilos ao colocar a cabeça no travesseiro. Não é todo dia que nossa integridade ou bondade é posta à prova.

O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé disse em vídeo recente que não se colocar do lado do bem é um sinal de inteligência. Não somos cidadãos de bem, o ser “bandido” existe em nós como possibilidade e, não raro, como realidade invisível. “Nós não vemos que não vemos”, disse certa vez o físico austríaco Heinz von Foerster, ao comentar sobre falhas na percepção humana. A maioria dos cidadãos de bem já cometeu pequenos crimes e só não tornou o crime um padrão de comportamento porque não esteve por tempo suficiente em circunstâncias favorecedoras.

Compreender que temos a mesma natureza de qualquer outro ser humano, bandido ou não, nos aproxima enquanto espécie. É isso que nos torna humanos, nossa semelhança e singularidade, nossa diferença. Paradoxalmente, é a singularidade ou diferença de cada ser humano que nos torna iguais. E é dessa compreensão que nascem os sentimentos de compaixão e de perdão, tão caros para a vida em sociedade.

Rodrigo Tavares Mendonça