quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Não chame mais ninguém de burro

Pintura: Salvador Dalí

O senso comum costuma classificar pessoas como inteligentes ou burras. Assim, a inteligência é vista como um contínuo com variações apenas de intensidade, não de tipo. Essa forma popular de ver a inteligência possui até respaldo científico, já que a medição do Quociente de Inteligência (QI) a coloca dentro do contínuo, ou seja, em uma ponta ficam as pessoas com retardo mental e, na outra, as com superdotação. No meio, ainda que com pequenas variações de intensidade, as pessoas normais. Essa forma de ver a inteligência foi radicalmente transformada pelo psicólogo americano Howard Gardner, com a introdução da Teoria das Inteligências Múltiplas.

A forma tradicional de ver a inteligência é uma meia verdade. O QI é verdadeiro porque útil para avaliar as variações de intensidade da capacidade intelectual, mas falso porque não contempla outros tipos de inteligência. Em outras palavras, é uma meia verdade ainda necessária.

As habilidades humanas são múltiplas e, como qualquer pessoa pode observar, não deriva do tamanho do QI. Há inteligências que escapam ao contínuo da capacidade intelectual. A inteligência musical, por exemplo, pode se manifestar com alta intensidade em pessoas sem muita inteligência lógico-matemática. Uma metáfora melhor para essa nova forma de ver a inteligência seria uma rede integrada de funções mentais, porém relativamente independentes.

Segundo Gardner, existem oito tipos diferentes de inteligência. Esses tipos se manifestam com variações de intensidade em cada pessoa. Assim, algumas têm um tipo específico de inteligência mais desenvolvido do que outras. E isso não significa necessariamente que são mais inteligentes. No caso concreto, pode significar apenas que possuem capacidades intelectuais distintas.

Os oito tipos de inteligência são:

  1. Linguística: domínio da linguagem e facilidade em usar as palavras ou desejo de explorar suas possibilidades. Própria de poetas, escritores, linguistas.
  2. Espacial: capacidade de compreender o mundo visual, modificar percepções e recriar experiências visuais mesmo sem estímulo físico. Comum em arquitetos, artistas, escultores, cartógrafos, navegadores, enxadristas.
  3. Lógico-matemática: habilidade para confrontar e avaliar objetos e abstrações, bem como discernir suas relações e princípios subjacentes. Típica de matemáticos, cientistas, filósofos.
  4. Musical: competência para ouvir, compor e executar obras com intensidade e ritmo. Pode estar relacionada a outras inteligências, como linguística, espacial e corporal-cinestésica. Aguçada em compositores, maestros, músicos, críticos de música.
  5. Físico-cinestésica: capacidade de controlar e comandar movimentos do corpo e manejar objetos habilmente. Bastante desenvolvida em dançarinos, atletas, atores.
  6. Intra e interpessoal: possibilidade de determinar humores, sentimentos e outros estados mentais em si mesmo e em outros. Presente em psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, políticos, líderes religiosos, antropólogos.
  7. Naturalista: talento para reconhecer e categorizar objetos naturais. Biólogos e naturalistas costumam ter essa habilidade.
  8. Existencial: facilidade para aprender questões amplas, fundamentais da existência. Própria de líderes espirituais, pensadores, filósofos.

Esses tipos de inteligência costumam ser chamados pelo senso comum de talentos ou dons. O craque de futebol, por exemplo, é visto como talentoso, não como alguém com inteligência físico-cinestésica. Todavia, essa forma tradicional de ver as habilidades humanas negligencia a capacidade intelectual envolvida no exercício de solução de problemas presente nas oito áreas da inteligência.

Por valorizar a diversidade que compõe a capacidade intelectual do ser humano, a Teoria das Inteligências Múltiplas possui ainda um efeito ético importante, já que reconhece a potência muitas vezes invisível de pessoas não valorizadas socialmente. Embora continue existindo pessoas mais inteligentes do que outras, agora é preciso perguntar em qual área ou em qual tipo de inteligência. Não chame mais ninguém de burro sem antes avaliar o grau de todos os oito tipos de inteligência.

Rodrigo Tavares Mendonça. Texto originalmente publicado no Jornal Cidade do dia 22 de fevereiro de 2017

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Insegurança

Na categoria das experiências humanas consideradas universais – aquelas vividas por todos, independentemente de cultura, escolaridade, classe social, gênero, etc. – certamente podemos incluir a insegurança. Em diversos momentos inevitavelmente sentimos algo que seria bem descrito se disséssemos: “me sinto inseguro(a)”. E provavelmente, ao longo do curso de uma vida, iremos revisitar inúmeras vezes esta experiência.

Importa destacar que, o fato de ser a insegurança uma experiência universal, não significa que seja vivida por todos da mesma forma, no mesmo grau, nas mesmas circunstâncias. Embora universal, trata-se de uma experiência profundamente íntima e pessoal; o que não nos impede de identificar nestas diversas experiências algumas características comuns e fundamentais. Gostaria de enumerar aqui algumas delas.

Uma característica essencial da insegurança reside na impossibilidade de garantias. A insegurança nasce no solo adubado pela incerteza. Sinto-me inseguro diante de uma situação em que não tenho certeza sobre como devo agir; em que não tenho garantias se serei admirado(a) ou reprovado(a); se as consequências de alguma ação serão positivas ou negativas; se serei capaz de conseguir aquilo que tanto quero, ou se serei capaz de afastar-me daquilo que tanto temo. São inúmeras as situações que podem nos despertar insegurança; situações dentre as quais a ausência de garantias se faz elemento comum. Talvez o caráter universal da insegurança resulte do fato de que a própria estrutura da vida, que padece de crônica indeterminação e imprevisibilidade, não permita que gozemos de muitas garantias.

Outra característica fundamental é seu direcionamento ao futuro. Sentimo-nos inseguros em relação a algo que ainda reside no futuro (complexo tempo que, se por um lado abriga os sonhos e as utopias humanas, por outro é o abrigo das incertezas). O passado, embora possa alimentar ou justificar a insegurança por guardar lembranças de experiências frustradas ou indesejadas, não é alvo desta. Embora a insegurança possa fincar raízes em experiências passadas, emerge quando apontam no horizonte incertezas futuras das quais não temos garantia se saberemos ou não enfrentar adequadamente.

Aliás, a desconfiança quanto aos recursos e habilidades pessoais necessários para lidar com determinada situação cumprem relevante função na configuração da insegurança e na determinação do grau em que esta será experimentada. Sentir-se impotente diante de determinada ocasião, ou julgar que os recursos e habilidades pessoais que se possui são insuficientes para lidar adequadamente com as dificuldades que possam se apresentar, mostram-se como condições básicas para o nascimento da insegurança.

Outro fator decisivo para determinar o grau de insegurança experimentado refere-se à importância do que está em jogo. Diante de alguma circunstância dotada de grande importância/valor pessoal em que não há garantias sobre seu desfecho, a insegurança tende a estabelecer-se tão imponente quanto a importância do que ela se refere. O grau de insegurança, talvez, possa funcionar como um ‘termômetro’ que nos indique a importância pessoal de algo, de alguém, de algum valor ou evento.

São estes somente alguns dos ingredientes que compõem a complexa experiência humana da insegurança. Experiência que guarda algo em comum com outras experiências como a frustração, a solidão, o luto, o medo, dentre tantas outras: são profundamente desagradáveis, e até dolorosas, mas são inerentes à condição humana. Vivê-las não é demérito algum, pois ninguém está imune. Vivenciá-las talvez seja um convite ao amadurecimento e ao aprendizado, ou talvez um lembrete de que estes são necessários.

Angelo Antônio Santos Cardoso

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Não seja escravo do macaco

Pintura: Salvador Dalí

A meditação está se tornando pop. Há dezenas de anos começou a sair dos mosteiros da Índia e região e a se infiltrar na cultura ocidental, tradicionalmente avessa ao ritmo oriental de viver. Um marco para a infiltração na cultura pop ocidental é o caso dos Beatles, que nos anos 60 imergiram em um retiro de dez dias para se dedicar à meditação transcendental, sob orientação do mestre indiano Maharishi Mahesh Yogi. Após a experiência, Paul disse: “Você não pode tomar drogas para sempre. Estamos procurando por algo mais natural”. George também comentou: “A meditação ajuda a encontrar realização na vida, a viver a vida ao máximo”.

Essa experiência poderia ser apenas mais uma maluquice de rockeiros famosos se a Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, não tivesse estudado os efeitos biológicos da meditação, após o médico Jon Kabat-Zinn assistir a uma palestra do mestre Yogi. Batizada de mindfulness (atenção plena, em português), a meditação ocidental se desvinculou da religião e ganhou um caráter laico e científico, características apreciadas por nossa cultura. Dessa forma, a prática conquistou até mesmo empresários de grandes multinacionais. Organizações como Ford, Nike, Google e Apple criaram programas de meditação para aumentar a concentração de seus funcionários.

Uma das conclusões sobre o viver que está presente na filosofia da meditação é que precisamos viver o presente, e fazemos isso muito pouco. O único tempo que temos é o presente, mas nossa mente nos leva constantemente ao passado e ao futuro. Se estamos com problema no casamento, por exemplo, sofremos por isso no trabalho e no happy hour. Mas o casamento não está na empresa ou na mesa do bar, e não percebemos isso. O presente, assim, adquire um status inferior. Nós não percebemos o vento ao caminhar pela cidade ou apreciamos a respiração ao trabalhar. Nossa mente está constantemente em outro lugar. Ela se apega a eventos passados e antecipa acontecimentos futuros. Vivemos muito pouco o presente.

Uma das consequências imediatas de não viver o presente é intensificar excessivamente os problemas da vida. Carregar os problemas para todas as situações os tornam maiores do que são na realidade. Os problemas não estão conosco o tempo todo, mas vivemos como se estivessem. Aprender a ser leve, ou seja, viver sem o peso do tempo que já passou ou que ainda está por vir, é uma das principais conquistas de quem medita regularmente.

Buda ensinou que a mente humana é como um macaco doido que fica pulando de galho em galho, ou de pensamento em pensamento. Não para. A cada momento está pensando em alguma coisa. A vida mental não cessa de pulsar. O problema é que as sensações do presente, os sentidos que nos conectam ao mundo, ficam em segundo plano. Não prestamos atenção no cheiro das árvores ou nas carícias do vento em nossa pele, por exemplo. Sem controlar o macaco, nos tornamos escravos dele. Focar nas sensações, a regra de ouro da meditação, é valorizar o presente e traçar o caminho para o indivíduo ser feliz consigo mesmo. Para isso, é preciso treinar o macaco.

Rodrigo Tavares Mendonça. Texto originalmente publicado no Jornal Cidade no dia 31 de janeiro de 2017