quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A internet promove falta de empatia

Pintura: Pablo Picasso

Apesar de vivermos em uma época na qual os direitos humanos são alvos constantes de ataques, o que mostra que uma parcela da sociedade considera que algumas pessoas merecem ser tratadas com menos humanidade do que outras, o adjetivo “humano” ainda sobrevive como qualidade positiva de quem o manifesta. Felizmente, ainda dizemos “ele se preocupa muito com os outros, é muito humano”.

Ser humano, em resumo, é ser empático. A empatia define nossa humanidade. Costuma-se dizer que empatia é se colocar no lugar do outro. Mas não é só isso. Empatia é se colocar no lugar do outro e ver a vida com os olhos dele. Não raro nos colocamos no lugar do outro e dizemos “se eu fosse você faria isso ou aquilo” ou “você não precisa se sentir desse jeito, você tem isso ou aquilo”. Isso não é ser empático. Na verdade, é o exato oposto, é negar as diferenças que nos fazem ter olhares diferentes sobre a vida.

Ser empático, então, é pensar como o outro irá pensar, sentir como o outro irá sentir. É preocupar-se com ele e nunca negar a legitimidade dos seus pensamentos e sentimentos. A orientação para a mudança deve partir da identificação das suas potencialidades e do reconhecimento da forma como o outro experiencia sua vida. Em outras palavras, é dizer “entendo como você pensa e sente dessa forma, por isso não consegue enxergar outras opções” ou “você tem todo o direito de se sentir assim, estou aqui para mostrar que você não está sozinho”.

A internet, contudo, especialmente as redes sociais, está facilitando a destruição do nosso comportamento empático. Grande parte das interações sociais atuais acontecem nas redes sociais, o que nos leva à seguinte conclusão: grande parte das interações sociais atuais carecem enormemente de empatia. Na internet, as pessoas não pensam duas vezes ao ofender o outro ou fazer julgamentos pesados sobre seu caráter ou personalidade de forma geral. Chamar o outro de “lixo” ou “merda”, por exemplo, tornou-se tão comum quanto dizer qualquer outra coisa sobre o outro.

O computador ou celular são poderosos intermediadores das relações humanas. O observador vê em sua frente apenas imagens e textos, não uma pessoa real. Em outros termos, a intermediação virtual das relações humanas as tornam menos humanas, pois a distância e a falta de contato físico e verbal dificultam o surgimento da empatia, ou seja, da capacidade de pensar e sentir o que o outro está pensando ou sentindo. Na frente dos intermediadores virtuais, não nos preocupamos com os pensamentos ou sentimentos do outro. E a falta de feedback sobre isso cria um círculo vicioso: não sabemos sobre os efeitos (positivos ou negativos) das nossas palavras.

Outro fator negativo que envolve as redes sociais é a falta de compromisso com o que se fala. As palavras soltas na rede aparentemente não causam dano a ninguém e a pessoa que diz não é responsabilizada por seu ato. Podemos dizer, por exemplo, que tal pessoa é ladra sem necessidade de provar ou apontar indícios e não existe a menor possibilidade de ser punido em caso de inverdade. A internet é a terra da total impunidade e irresponsabilidade.

A meu ver, não à toa a depressão é a doença do século XXI. Um dos sentimentos mais característicos das síndromes depressivas é o de solidão. A pessoa depressiva sente-se solitária mesmo na companhia de outras pessoas e em contato com inúmeras outras pelas redes sociais. Parte da causa e da cura da depressão é a empatia. Ser empático e receber empatia são interações poderosas que promovem saúde e felicidade. E o modelo de relações virtuais não empáticas está se reproduzindo nas relações humanas reais. A falta de empatia no mundo virtual afeta nossa capacidade de ser empático no mundo real.

Por fim, fica a pergunta: como podemos nos tornar mais empáticos e, por consequência, responsáveis nas redes sociais?

Rodrigo Tavares Mendonça

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Gays, venham tratar o preconceito

Pintura: Tarsila do Amaral

O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, da Justiça Federal do Distrito Federal, permitiu nesta semana que psicólogos ofereçam a polêmica terapia de reversão sexual, que objetiva tratar a homossexualidade. Ainda que em caráter liminar, ele impediu o Conselho Federal de Psicologia (CFP) de punir profissionais que ofereçam tratamento para a homossexualidade, prática proibida pela Resolução CFP 01/1999.

A rigor, o psicólogo apenas oferece tratamento para pessoas com transtornos mentais ou problemas emocionais ou relacionais. A decisão do juiz, na prática, volta a homossexualidade para a categoria de transtorno mental ou problema emocional. E a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo” da classificação de doenças em 1990. Qual a vantagem de abordar a homossexualidade como transtorno mental ou, ainda que seja, um problema emocional?

A orientação sexual está no campo do desejo humano, que não se enquadra facilmente em categorias como normal e patológico. Como se define o que é normal e patológico? Uma forma muito comum é a estatística, ou seja, normal é o que se faz presente na maioria da população. Obviamente, esse critério é insuficiente, pois não se justifica patologizar a diversidade da sexualidade humana, por exemplo, apenas por ser minoria. Outra forma possível é a chamada normalidade funcional, ou seja, define-se como patológico o que causa disfunção pessoal ou social. No caso concreto, a homossexualidade seria patológica para os que sofrem com ela e normal para os que a aceitam. Acredito que a decisão do juiz se baseie nesse conceito essencialmente subjetivo de normalidade.

Contudo, devemos observar a questão com mais atenção. Qual o efeito negativo que a homossexualidade pode produzir no indivíduo ou na sociedade? A meu ver, o único efeito negativo é o sofrimento causado por não ser aceito pela família ou sociedade mais ampla, ou ainda por não se encaixar no conceito de normalidade ideal, ou seja, aquele critério de normalidade definido por visões culturais, ideológicas, dogmáticas ou doutrinárias. Neste ponto, destaco que o efeito negativo de se considerar a homossexualidade um transtorno mental ou problema emocional é imenso para o bem-estar dos indivíduos e da coletividade, pois, além de gerar sofrimento pessoal e social, estimula a violência contra os homossexuais.

O problema não é a homossexualidade em si, mas o preconceito. Como disse anteriormente, a orientação sexual está no campo do desejo humano. Em outras palavras, o indivíduo homossexual, mesmo que queira a mudança de orientação sexual, paradoxalmente quer ser homossexual. É seu desejo, apesar de não ser sua escolha. A homossexualidade não é opção sexual, e sim orientação sexual. Embora a ciência ainda não conheça a natureza da homossexualidade, sabemos que não é uma escolha do indivíduo, assim como a heterossexualidade também não é.

A OMS define, desde 1946, o conceito de normalidade (ou saúde) como “completo bem-estar físico, mental e social”, ultrapassando o conceito anteriormente aceito, o de normalidade como ausência de doença. Contudo, demorou quase meio século para concretizá-lo, pois, conforme explicado anteriormente, apenas em 1990 retirou o “homossexualismo” da classificação de doenças. Que tipo de mal-estar físico, mental ou social a homossexualidade produz? O único mal-estar nasce do preconceito, seja ele social ou, principalmente, pessoal.

Então, quando as pessoas começarem a procurar os consultórios de psicologia para tratar a homossexualidade, os psicólogos devem, na verdade, é tratar o sofrimento causado pelo preconceito que construíram sobre a sua própria orientação sexual e sobre a diversidade da sexualidade humana.

Rodrigo Tavares Mendonça. Texto originalmente publicado no Jornal Cidade no dia 20 de setembro de 2017

quinta-feira, 4 de maio de 2017

A ESQUECIDA ARTE DO CONVÍVIO


A convivência é um aspecto inevitável da vida humana. É impossível ao homem estar alheio aos outros, e não faltam evidências (científicas, filosóficas, empíricas...) que atestam este fato.

O renomado físico Fritjof Capra possui em seu currículo dezenas de obras em que, entre outros temas, sustenta a irrevogável “interdependência” de tudo o que existe. O que significa isso? Significa que tudo o que existe não pode existir dependendo só de si. Estar ligado aos outros é tão básico e necessário à vida quanto a respiração, a alimentação e a reprodução. O diferente de si é condição necessária para a existência.

Numa linha semelhante à de Capra, o teólogo Leonardo Boff compreende a Terra como uma rede à qual todos os seres estão interconectados e dependem de todos; e que as condições básicas da vida só se fazem possíveis devido a esta interconexão. Por exemplo: o oxigênio, essencial à respiração dos animais, é produzido e renovado por outros seres (árvores, algas, etc.). Sem estes para renovar nosso oxigênio, a existência se tornaria inviável. Aliás, o próprio ar que respiramos é compartilhado por todos os seres vivos. Através dele estamos todos conectados. Se, por exemplo, poluímos o ar a ponto de torná-lo irrespirável, afetamos TODOS os seres vivos que do ar precisam para sobreviver.

Trazendo a discussão especificamente para o universo humano, o filósofo Martin Heidegger defende que o “ser” do homem é, antes de tudo, “ser-com-os-outros”. Em outras palavras, existir é co-existir (existir junto): o homem não existe somente, ele “co-existe”. O indivíduo humano depende dos outros para ser o que é (evidencia-se aqui a interdependência), e desde o começo até o fim da vida afetará e será afetado incessantemente por outros humanos. Heidegger ainda argumenta que, mesmo se o homem decide confinar-se ou fugir a toda interação com outros homens, ele só pode tomar este tipo de decisão após ser afetado por suas experiências de convívio. A conclusão a que Heidegger nos conduz: é impossível não haver conexão, não afetarmos nem sermos afetados pelos outros. Somos afetados até mesmo nas mais radicais tentativas de isolamento.

Fato tão amplamente constatado, a inevitável conexão parece ter sido esquecida ou ignorada por muitos. Este aparente esquecimento torna-se evidente em comportamentos e atitudes que têm se tornado cada vez mais corriqueiros. Talvez um dos exemplos mais evidentes seja a constante demonstração de hostilidade entre indivíduos e grupos antagônicos, em vários campos da vida humana.

No campo da política, grupos de esquerda e de direita infantilizam e imbecilizam uns aos outros, esquecendo que assim contribuem para acentuar o extremismo alheio e o consequente distanciamento que impossibilita todo e qualquer diálogo – impossibilidade que prejudica a ambos.

No campo social, a crescente hostilidade dos auto-intitulados “cidadãos-de-bem” a grupos e indivíduos marginalizados não faz outra coisa senão fragilizar os laços sociais e de pertencimento destes, convidando-os, assim, a relacionar-se no mesmo nível – consolidando cada vez mais a hostilidade como mediadora das relações que, como já argumentamos, é inevitável. Conduta semelhante é dirigida a minorias historicamente subjugadas (como negros, mulheres, homossexuais, usuários de drogas, etc.), colocando, assim, o ódio entre os principais ingredientes do pacto social.

Em nível pessoal, não tem sido raro deparar-se com relações entre casais, pais e filhos, irmãos, patrões e empregados, professores e alunos (...) que se pautam por tentativas de dominação alheia, de humilhação, pelo assujeitamento do outro às vontades individuais, pelo menosprezo ao outro, etc. Não se dão conta que ao proceder desta forma diminuem a qualidade da relação em que eles mesmos estão inseridos.

A atitude fundamental que liga estes exemplos – e inúmeros outros que também poderiam ser citados – é a mesma: em ambos os casos destaca-se uma conduta que age como um veneno a sufocar o inevitável convívio, a irrevogável comunhão que, gostando ou não, temos com aqueles que compartilham conosco as mesmas relações, os mesmos espaços, o mesmo mundo, a mesma casa comum.

Faz-se urgente e de suma importância a adoção – em nível pessoal, social e planetário – de atitudes mais favoráveis ao convívio que, como vimos, é a única forma viável que temos para existir.

Angelo Antônio Santos Cardoso

quarta-feira, 12 de abril de 2017

O que esperar do psicólogo ou três desafios clínicos

Pintura: Tarsila do Amaral

Talvez o preconceito mais comum envolvendo a psicoterapia se resuma na seguinte frase: “psicólogo é para doido”. Pessoas de todas as classes sociais reproduzem essa visão. Algumas tentam evitar o preconceito com eufemismo, dizendo: “psicólogo não é só para doido, mas para pessoas com problemas emocionais graves”. Porém a essência do erro é a mesma nos dois casos. Ainda é um mistério para muitas pessoas o que o psicólogo faz e, principalmente, como ele faz.

O primeiro desafio clínico que todo psicólogo enfrenta é evitar que a psicoterapia se transforme em uma sessão de desabafo. Esse desafio clínico, aliás, desafia outro preconceito comum sobre a psicoterapia, resumido na seguinte frase: “eu não preciso de psicólogo, não preciso de alguém para desabafar”. Algumas pessoas procuram o psicólogo em situação de extrema fragilidade e, por isso, não conseguem fazer nada além de desabafar. O psicólogo está ali para apoiar. Mas acolher o desabafo está longe de ser a função clínica mais importante e, principalmente, a mais efetiva. Em resumo, a psicoterapia é um espaço de reflexão. Os temas trabalhados afetam profundamente as emoções, mas sua externalização não é o objetivo primordial.

A definição do contexto terapêutico como um espaço de reflexão nos mostra um caminho para conhecer a psicoterapia e nos aponta também o que ela não é. O segundo desafio clínico do psicólogo é evitar dar conselhos. Como no primeiro, esse desafio confronta mais um preconceito comum, materializado quando alguém diz: “eu não preciso de psicólogo, não preciso que alguém me dê conselhos”. Muitas pessoas veem o psicólogo como um guru que sabe a melhor saída em situações difíceis. Entretanto, desenvolver a autonomia do cliente é um dos princípios básicos da psicoterapia e, inclusive, do código de ética do psicólogo. Ultrapassa a técnica, alcança a ética. E aconselhar é construir uma relação de dependência.

O terceiro desafio clínico envolve a capacidade técnica do psicólogo e a qualidade da relação terapêutica. O objetivo da psicoterapia é produzir reflexões eficientes, ou seja, capazes de desestabilizar premissas rígidas sobre a identidade e a vida do cliente. Ela mira a superação de problemas e o crescimento pessoal. Com mais leveza e flexibilidade, abre-se um mundo novo. As narrativas que construímos sobre quem somos e como o mundo funciona muitas vezes nos paralisam, impedem-nos de enxergar alternativas disponíveis. Potencialidades necessárias ficam escondidas e a vida começa a se desvitalizar. Então passamos a acreditar que o problema está no funcionamento errado do mundo. No entanto, o que precisa mudar de verdade é nossa forma de se posicionar nele. Para isso, é essencial mudar a forma de vê-lo.

Costuma-se dizer que a psicoterapia precisa introduzir diferenças na narrativa do cliente. Como em toda reflexão, são os elementos diferentes do habitual que são capazes de produzir mudança. O desafio clínico, então, é introduzir diferenças que não sejam pequenas demais para não serem imperceptíveis ou grandes demais para não produzir medo e resistência ou não serem assimiladas. É a diferença que confronta os lugares comuns da narrativa social sobre a psicoterapia e desestabiliza as premissas rígidas das pessoas. Em resumo, introduzir as diferenças na medida certa é o principal desafio do psicólogo.

Rodrigo Tavares Mendonça

terça-feira, 21 de março de 2017

Quando chega a hora de escolher a profissão

Pintura: Tarsila do Amaral

A escolha profissional é uma das mais importantes que temos de fazer na vida. Escolher a profissão é construir a própria identidade. “O que você é?”, costumamos perguntar. Ora, somos muitas coisas, mas a profissão define grande parte de quem somos. A identidade profissional diz da posição que a pessoa ocupa na sociedade, da importância que tem para as pessoas ao redor. Ser alguma coisa, em termos profissionais, significa ser algo para os outros, ocupar um lugar na sociedade para fazer acontecer a vida social.

Quando criança, o ser humano precisa que outra pessoa cuide dele. O estado de fragilidade inerente à espécie humana apenas gradualmente vai cedendo espaço para a ação autônoma. Na adolescência, inicia-se a transição para a fase adulta, a pessoa vai assumindo a responsabilidade pela própria vida e passando para a posição de cuidar. E cuidar é oferecer algo ao outro, satisfazer suas necessidades ou desejos, marcar um lugar na sua vida. Da mesma forma, o trabalho é uma forma de marcar um lugar na sociedade e de satisfazer as necessidades ou desejos dos outros. Em outras palavras, de cuidar.

A decisão que se impõe ao jovem, então, refere-se ao lugar que irá ocupar na sociedade e à identidade que está construindo enquanto adulto, ou seja, passando a cuidar do outro ou oferecer algo para a sociedade. Escolher uma profissão, nessa perspectiva, é dar um passo para ser adulto e exercer um novo papel na vida. Não é de se admirar que a indecisão e a instabilidade emocional sejam reinantes nessa fase.

Soma-se a esse complexo processo de se tornar adulto a imaturidade que está se alongando na contemporaneidade; a adolescência está cada vez maior. A irresponsabilidade, a instabilidade emocional e a dependência financeira que caracterizam o ser adolescente frequentemente se mostram em pessoas de 30 anos. Se há algumas dezenas de anos era comum encontrar pessoas maduras na faixa dos 16 anos, que trabalhavam e cuidavam de suas próprias famílias, hoje isso não acontece.

Para compreender essa questão, é necessário saber que a adolescência não é uma fase demarcada biologicamente, que começa na puberdade, aos 12 anos, e termina ao completar o desenvolvimento físico, aos 18 anos (embora recentes pesquisas tenham descoberto que estruturas complexas do cérebro humano continuam se desenvolvendo até os 25 anos). Pensar assim é negar a construção social que faz a adolescência ser o que é: um acontecimento histórico relativamente recente.

O surgimento da adolescência coincide com o crescimento da demanda por preparação educacional para adentrar ao mundo do trabalho. Falar em adolescência é falar em período de transição, mudança ou transformação pelo qual passa o ser humano, que vai deixando gradativamente a vivência infantil para assumir um novo papel na sociedade. Durante muitos séculos poucas pessoas possuíam este privilégio, um período predeterminado de preparação; a maioria saía da infância diretamente para a fase adulta, com todas as responsabilidades que a fase requer. É uma conquista do século XX a valorização da adolescência como período de preparação para o universo adulto e de desenvolvimento da maturidade emocional.

Para complexificar ainda mais a questão, cito o recente crescimento da quantidade de profissões e da diversidade de campos de atuação em cada uma delas. Isso torna ainda mais difícil a escolha profissional. É diante dessa angustiante situação que o jovem precisa fazer sua escolha.

É no momento de angústia e de falta de informação adequada que se faz necessário buscar ajuda psicológica, por meio da orientação profissional. O processo consiste em ajudar o jovem a conhecer a si mesmo, seus interesses, aptidões e valores e os fatores que influenciam sua escolha e oferecer informações sobre as profissões existentes, as instituições de ensino técnico e superior e o mercado de trabalho. Fazer uma escolha consciente é o melhor passo para acertar o caminho que se quer construir para a própria vida.

Rodrigo Tavares Mendonça

Expectativas e idealizações: sementes da decepção?


Poucos escritores conseguiram combinar simplicidade e profundidade em um único livro de forma tão notável quanto Antoine de Saint-Exupéry, em seu best-seller “O Pequeno Príncipe”. Não por acaso, sua famosa obra figura entre as mais populares na literatura mundial. Algumas das mensagens e reflexões contidas neste livro se tornaram tão conhecidas que mesmo aqueles que não o leram provavelmente já ouviram sobre um ou outro trecho. Quem nunca ouviu, por exemplo, a célebre frase “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”? Não há como duvidar de que se trata de um livro que possui uma capacidade ímpar de tocar as pessoas.

Como ocorre em obras artísticas (não somente em livros, mas também em filmes, poesias, canções, peças de teatro, etc.) dotadas de grande profundidade, muitas vezes em uma única leitura não é possível captar toda a beleza ali contida. Belas pérolas acabam, às vezes, assumindo uma importância secundária dentro da trama central. Nestes casos, cada releitura enriquece um pouco mais e chama a atenção para um aspecto até então despercebido. Destas belas pérolas secundárias que compõem “O Pequeno Príncipe”, gostaria aqui de dar destaque à personagem do Rei.

O Rei, ao ser visitado pelo principezinho, gaba-se de reinar sobre todo o universo e, o que é ainda mais impressionante, de jamais ser desobedecido. Ao ser questionado sobre como conseguia tal feito, ele explica orgulhosamente sua conclusão: “Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado? (...) É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar (...). Eu tenho direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis” (pg. 37 e 38).

Mensagem semelhante foi transmitida pelo ex-presidente uruguaio José Mujica, em um de seus discursos históricos: "É preciso ter a sabedoria de não pedir às pessoas o que elas não podem dar. Porque se a nossa impaciência pede mais aos homens do que eles podem dar, nós nos expomos a um fracasso e arruinamos aqueles a quem pedimos".

Tanto a personagem do Rei quanto o ex-presidente Mujica apontam para algo que raramente recebe nossa atenção: muitas vezes são traçadas expectativas elevadas, difíceis, até mesmo improváveis de serem atingidas; mas poucas vezes é questionado se a expectativa criada realmente era alcançável, viável ou mesmo justa. Nem sempre nos atentamos ao fato de que idealizações inalcançáveis, longe de impulsionar bons desempenhos, acabam por plantar a semente da decepção, por parte daquele que projeta, e da culpa, naquele em que é projetada tal idealização.

Não se trata de pregar a acomodação ou transmitir a ideia de que não se deve jamais nutrir qualquer espécie de expectativa. Se certo nível de exigência é importante (pois sem ela caímos na acomodação e nos paralisamos), um excesso pode conduzir à decepção e ao fracasso. Trata-se de dosar a expectativa que é criada; de ser razoável e coerente com aquilo que é possível; e de ser justo consigo (quando se trata de uma autoexigência) e com o outro.

Talvez, livres das decepções, da vergonha, da culpa, da raiva, da baixa autoestima e de tantos outros sentimentos negativos causados pelas idealizações e expectativas demasiadamente elevadas, as relações humanas se tornem mais prazerosas e de maior qualidade.

Angelo Antônio Santos Cardoso

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Não chame mais ninguém de burro

Pintura: Salvador Dalí

O senso comum costuma classificar pessoas como inteligentes ou burras. Assim, a inteligência é vista como um contínuo com variações apenas de intensidade, não de tipo. Essa forma popular de ver a inteligência possui até respaldo científico, já que a medição do Quociente de Inteligência (QI) a coloca dentro do contínuo, ou seja, em uma ponta ficam as pessoas com retardo mental e, na outra, as com superdotação. No meio, ainda que com pequenas variações de intensidade, as pessoas normais. Essa forma de ver a inteligência foi radicalmente transformada pelo psicólogo americano Howard Gardner, com a introdução da Teoria das Inteligências Múltiplas.

A forma tradicional de ver a inteligência é uma meia verdade. O QI é verdadeiro porque útil para avaliar as variações de intensidade da capacidade intelectual, mas falso porque não contempla outros tipos de inteligência. Em outras palavras, é uma meia verdade ainda necessária.

As habilidades humanas são múltiplas e, como qualquer pessoa pode observar, não deriva do tamanho do QI. Há inteligências que escapam ao contínuo da capacidade intelectual. A inteligência musical, por exemplo, pode se manifestar com alta intensidade em pessoas sem muita inteligência lógico-matemática. Uma metáfora melhor para essa nova forma de ver a inteligência seria uma rede integrada de funções mentais, porém relativamente independentes.

Segundo Gardner, existem oito tipos diferentes de inteligência. Esses tipos se manifestam com variações de intensidade em cada pessoa. Assim, algumas têm um tipo específico de inteligência mais desenvolvido do que outras. E isso não significa necessariamente que são mais inteligentes. No caso concreto, pode significar apenas que possuem capacidades intelectuais distintas.

Os oito tipos de inteligência são:

  1. Linguística: domínio da linguagem e facilidade em usar as palavras ou desejo de explorar suas possibilidades. Própria de poetas, escritores, linguistas.
  2. Espacial: capacidade de compreender o mundo visual, modificar percepções e recriar experiências visuais mesmo sem estímulo físico. Comum em arquitetos, artistas, escultores, cartógrafos, navegadores, enxadristas.
  3. Lógico-matemática: habilidade para confrontar e avaliar objetos e abstrações, bem como discernir suas relações e princípios subjacentes. Típica de matemáticos, cientistas, filósofos.
  4. Musical: competência para ouvir, compor e executar obras com intensidade e ritmo. Pode estar relacionada a outras inteligências, como linguística, espacial e corporal-cinestésica. Aguçada em compositores, maestros, músicos, críticos de música.
  5. Físico-cinestésica: capacidade de controlar e comandar movimentos do corpo e manejar objetos habilmente. Bastante desenvolvida em dançarinos, atletas, atores.
  6. Intra e interpessoal: possibilidade de determinar humores, sentimentos e outros estados mentais em si mesmo e em outros. Presente em psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, políticos, líderes religiosos, antropólogos.
  7. Naturalista: talento para reconhecer e categorizar objetos naturais. Biólogos e naturalistas costumam ter essa habilidade.
  8. Existencial: facilidade para aprender questões amplas, fundamentais da existência. Própria de líderes espirituais, pensadores, filósofos.

Esses tipos de inteligência costumam ser chamados pelo senso comum de talentos ou dons. O craque de futebol, por exemplo, é visto como talentoso, não como alguém com inteligência físico-cinestésica. Todavia, essa forma tradicional de ver as habilidades humanas negligencia a capacidade intelectual envolvida no exercício de solução de problemas presente nas oito áreas da inteligência.

Por valorizar a diversidade que compõe a capacidade intelectual do ser humano, a Teoria das Inteligências Múltiplas possui ainda um efeito ético importante, já que reconhece a potência muitas vezes invisível de pessoas não valorizadas socialmente. Embora continue existindo pessoas mais inteligentes do que outras, agora é preciso perguntar em qual área ou em qual tipo de inteligência. Não chame mais ninguém de burro sem antes avaliar o grau de todos os oito tipos de inteligência.

Rodrigo Tavares Mendonça. Texto originalmente publicado no Jornal Cidade do dia 22 de fevereiro de 2017